terça-feira, 18 de maio de 2010

"A vergonha de ser pobre": um texto revelador!

"Em princípio, a vergonha que sentimos por um ou outro de nossos atos não nos exclui da convivência social." É uma frase introdutória do artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, por Cantardo Calligaris, que abaixo reproduzimos, com o sentido de compartilhar essa interessante reflexão sobre uma das mais brutais formas de exclusão.

Calligaris repercute em seu excelente texto com auxílio de outros autores a idéia da "vergonha radical" ou excludente, que leva inexoravelmente à humilhação e, no caso, por exemplo, de presidiários ou ex-presidiários ao desprezo ou à dupla punição. Sugere, por outro lado, um repensar humanístico-estrutural no comportamento social, principalmente por parte de dirigentes e grupos diversos (governos, sociedade, comandantes e comandados), no contexto da sociedade de consumo que vivemos e, sobretudo, refere à pobreza além dela, mas identificada com a vergonha, o preconceito e a discriminação.

O autor cita uma crítica de Martha Nussbaum, professora de ética da Faculdade de direito da Universidade de Chicago, em seu livro de bolso traduzido para o português: escondendo-se da humanidade: desgosto, vergonha e a lei, cuja passagem sobra como uma alerta à alma: "nossa vida é livremente inventada e reinventada por nossos atos, portanto, nossos atos podem ser punidos e envergonhados, mas nunca deve ser envergonhada e estigmatizada nossa 'essência'"

E segue o autor discutindo a vergonha que exclui , destacando pesquisas de Guilligan que dão conta que a maioria dos atos criminosos encontram sua motivação no sentimento de humilhação, e este ressalta que "a perda da dignidade ameaça o sujeito com a perspectiva de uma morte mais cruel do que a morte de seu  corpo". Em seguida ele menciona novamente Gilligan , que sustenta: "a miséria, em si, não é nunca causa da violência, mas a coisa muda se ela for acompanhada pela exclusão social"...

Todo o ensaio e também as citações de Calligaris nos remetem à uma inevitável reflexão sobre o agir das elites manipuladoras  no poder e sobre as nossas próprias ações, ainda tão permeadas de alienações e de imbricados preconceitos, especialmente na sua conclusão, momento em que cita outro ensaísta social, Yuri Lotman, em seu ensaio, "Semiótica dos Conceitos de Vergonha e Medo", no qual este afirma que, "é possível organizar uma coletividade ao redor do medo (medo da punição, medo dos invasores, medo da violência etc), mas seria uma coletividade animalesca:..."

E encerra salientando que, "quando uma "elite" desprovida dessa vergonha exclui e humilha o povo, a coletividade se organiza do jeito que sobra: pelo medo da violência de seus excluídos".

O que o texto de Contardo Calligaris, tão profundo em sua abordagem, pode nos trazer de mais tocante, no que respeita à nossa condição humana? Creio ser uma chamada ardente sobre o  modo de vida das sociedades chamadas pós-modernas, baseado em padrões de alto consumo em detrimento de uma renitente desigualdade social e muito pouco envergonhado com o alheamento que devotamos à história que iniciamos a construir como seres civilizados. Leiam o texto completo e comentem.

 
"A vergonha de ser pobre"

CONTARDO CALLIGARIS


Em princípio, a vergonha que sentimos por um ou outro de nossos atos não nos exclui da convivência social. Ao contrário, ela nos convida a resgatar nossa dignidade com novas ações e a voltar para o mundo de cara lavada.

Mas há uma outra vergonha, radical, que pode nos afastar da coletividade, sem retorno: é a vergonha de quem somos, não de algo que fizemos.

Os crimes infamantes, “hediondos”, por exemplo, são atos que jogam uma sombra sinistra e quase definitiva sobre o réu. Nossa sociedade parece pedir, nesses casos, uma vergonha radical, que afete não tanto o crime quanto o próprio “ser” do culpado. Um protótipo, imortalizado pelo romance de Nathaniel Hawthorne, “A Letra Escarlate”, é a punição da adúltera por uma letra inscrita em seu corpo; outro é o costume islâmico de cortar a mão de quem rouba. Em ambos os casos, a punição é uma marca indelével: a vergonha não é apenas relativa aos atos, ela é um estigma duradouro que identifica e exclui quem errou.

Mas não é preciso procurar tão longe: as dificuldades de qualquer ex-presidiário que queira refazer sua vida mostram que, mesmo na administração ordinária de nossa justiça, uma vergonha radical e excludente pode ser parte da punição.

Acaba de sair em livro de bolso “Hiding from Humanity: Disgust, Shame, and the Law” (escondendo-se da humanidade: desgosto, vergonha e a lei), de Martha Nussbaum, professora de ética da faculdade de direito da Universidade de Chicago (a primeira edição é de 2004). Nussbaum mostra que uma vergonha radical ainda produz exclusão nas sociedades modernas. Há a vergonha dos criminosos que pagaram sua dívida com a sociedade, mas continuam manchados por uma aura de infâmia, assim como há a vergonha dos negros, das minorias sexuais, dos incultos, dos miseráveis, dos gordos ou dos fumantes.

A crítica de Nussbaum (que retoma um clássico da sociologia dos anos 60, “Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, de Erving Goffman) baseia-se num grande princípio da moral moderna: nossa vida é livremente inventada e reinventada por nossos atos, portanto, nossos atos podem ser punidos e envergonhados, mas nunca deve ser envergonhada e estigmatizada nossa “essência”.

Há também uma razão pragmática para criticar a vergonha radical e excludente. James Gilligan, professor de psiquiatria da universidade Harvard, pesquisa os efeitos sociais da vergonha que exclui. Um bom resumo de seu trabalho é o artigo “Shame, Guilt, and Violence” (vergonha, culpa e violência), publicado num número especial sobre vergonha de “Social Research”, vol. 70, nº 4, 2003 (www.findarticles.com/p/articles/mi-m2267/is-4-70/ai-112943739).

Desde 1975, as pesquisas de Gilligan mostram que a maioria dos atos criminosos encontram sua motivação no sentimento de humilhação. A perda de dignidade ameaça o sujeito com a perspectiva de uma morte mais cruel do que a morte de seu corpo: uma morte simbólica, que torna vergonhosa sua simples existência. Essa vergonha radical evoca o desamparo de um recém-nascido que não fosse acolhido no mundo por amor algum.

Para Gilligan, a miséria, em si, não é nunca causa da violência, mas a coisa muda se ela for acompanhada pela exclusão social: a vergonha de ser excluído fala mais alto do que os freios morais. Qualquer ato é possível na tentativa desesperada de exigir o respeito dos outros: “Se eles percebem que não têm meios não violentos de se tornarem independentes e de tomar conta de si mesmos (habilidades, educação e emprego), a atividade e a agressividade estimuladas pela vergonha podem se manifestar em comportamentos violentos, sádicos e mesmo homicidas”.

Conseqüência: um sistema penal humilhante, que desacate a humanidade de seus condenados, só produz neles a necessidade de voltar a impor respeito pela violência de seus atos.

Outra conseqüência: uma coletividade pode conviver em paz apesar de grandes diferenças sociais e econômicas, mas à condição que ela não exclua e envergonhe uma parte de seus membros.

Ora, na semana passada, concluí minha coluna observando o seguinte: uma “elite” insegura, decidida a confirmar sua legitimidade ostentando e esbanjando, transforma a pobreza do povo em motivo de vergonha e exclusão, ou seja, induz o povo a sentir vergonha de sua própria condição.

A conclusão fica com Yuri Lotman, o pai da ciência dos signos, num breve ensaio, “Semiótica dos Conceitos de Vergonha e Medo”, que me foi oportunamente lembrado por uma leitora, Ude Baldan (em português, o texto está nos “Ensaios de Semiótica Soviética”"). Lotman afirma que é possível organizar uma coletividade ao redor do medo (medo da punição, medo dos invasores, medo da violência etc.), mas seria uma coletividade animalesca: uma sociedade autenticamente humana é organizada pela freio moral garantido pela vergonha.

Pois bem, quando uma “elite” desprovida dessa vergonha exclui e humilha o povo, a coletividade se organiza do jeito que sobra: pelo medo da violência de seus excluídos.


2 comentários:

Anônimo disse...

As crianças pobres sofrem duplamente. Pela pobreza propriamente dita e também pela vergonha que sentem de ser pobre.
Fui criança pobre, adolescente pobre, adulto jovem pobre. Só comecei a perder vergonha de ser pobre com o amadurecimento. Texto bom e verdadeiro. Quanto à vergonha conduzir à criminalidade, aí é outra estória. Pode explicar, mas não justifica.

Renato disse...

De fato, é um texto que chama mesmo a a nossa atenção, principalmente para o aspecto do preconceito, que leva à humilhação. É algo da ignorância humana, mas absolutamente presente entre nós. Boa sugestão de leitura...