terça-feira, 17 de novembro de 2009

Corporativismo e alienação: um desafio a ser enfrentado



“Os movimentos sindicais e corporativos como atores da democracia”, foi o título que com a ajuda de meu orientador melhor encontrei para representar a dissertação que permiti-me fazer sobre minhas reminiscências políticas sindicais e as contradições que tais experiências me legaram, em cumprimento à exigência de trabalho final do curso de pós-graduação em Ciências Políticas, concluído há poucos anos.

E para não incorrer em nenhuma “ofensa” histórica aos meus antigos e bons companheiros de sindicalismo, deparei-me dias e noites justamente à busca desta correta definição, uma vez que no conteúdo das cerca de cem páginas elaboradas, o foco de minha análise crítica deu-se exatamente na ambivalência da angústia que o saldo daquela singular experiência me legou, qual seja: como compatibilizar uma história que começara da utopia “revolucionária” que herdamos dos movimentos libertários iniciados ainda no fim do século XIX e culminaram com as promessas animadoras da revolução bolchevique de 1917, na Rússia, com o que me parecia restar, um corporativismo exacerbado e de viés claramente a-politizado ou alienado.

Foi, de fato, muito valiosa a contribuição que me deu o professor Antônio Teixeira de Barros, para que, afinal, resumisse no título aquilo que o trabalho pretendia criticamente apresentar, sem que me perdesse no devaneio de minhas desilusões ideológicas mais recentes e, por outro lado, deixasse de referenciar com a imparcialidade histórica exigida para um trabalho acadêmico-científico, o protagonismo que as lutas sindicais e seus dirigentes exerceram em períodos alternados entre seu nascimento no início do século XX e o ápice das mobilizações populares e sociais, vivido no momento Constituinte de 1987/1988. E, sobretudo, devo ressaltar, a orientação filosófica que recebi, no sentido de reconhecer os méritos da contribuição daqueles atores para a construção da democracia política no Brasil. Isto é fato.

Neste fim-de-semana que passou, os principais jornais do país continuaram a repercutir questões atuais do “nosso” mundo político e da Era Lula que vivemos, que muito têm a ver com as dúvidas e desconfianças com as quais de debrucei no curso de meu trabalho inteiro. E como sugestão de compartilhamento sugiro as seguintes leituras completas de artigos: José de Souza Martins: Os 'carolas' do ABC ( O estado de São Paulo, 15/11); Fábio Wanderley Reis: Acerca do Estado-”amálgama” (valor Econômico, 16/11); Ferreira Gullar: Retrocesso à vista (Folha de São Paulo, 16/11); Gerson Camarotti e Maria Lima: Do Lula-lá ao Lula-cá com Collor e Sarney (O Globo – O País – 15/11). Suely Caldas: O muro abaixo do Equador (O Estado de São Paulo, 15/11).

Mas, como semana passada já havia me manifestado sobre o triste episódio da garota-estudante da Uniban, e fazendo a leitura do Professor de Ciências Humanas da USP, José de Souza Martins, me dei conta das muitas coincidências entre seu texto e aquilo que iniciei a comentar, mas que, para não cansá-los parei no protesto, retomo agora algumas incursões pela inferência do acadêmico que, de tão criticamente apropriadas ao contexto creio deveriam ser mais amplamente refletidas no sentido da educação para a cidadania.

No segundo parágrafo, José de Souza Martins começa a explorar com extrema lucidez, o que depreendi, como uma ilusão de aprendizado político-filosófico, por conta do acumulado das lutas sindicais e corporativas, quando sentencia: [A intelectualidade acadêmica dos anos finais da ditadura militar rejubilara-se com o surgimento do que foi chamado de “novo sindicalismo.] ...[Uma enxurrada de conceitos e de interpretações imputou à classe operária regional, de carne e osso, as virtudes de classe operária filosófica, como a definiu Agnes Heller em outro contexto, de análises feitas em outros países e em outras circunstâncias.] Pontuo aqui uma entre as muitas coincidências entre o que penso e a visão do professor, pois muito já afirmei sobre o chamado “novo sindicalismo”, ressaltando que de novo tinha mesmo o nome e a vontade hegemônica, haja vista que as práticas de seus novos líderes pouco sugeriam de efetivamente moderno. No mesmo parágrafo, ele prossegue que [as mediações culturais, sociais e históricas, das determinações que fizeram da classe operária da região industrial uma classe operária historicamente singular e até relativamente diversa da dos manuais de ciência política, ou seja, conservadora e corporativa.] Grifo meu.

Já no parágrafo quarto, José de Souza Martins comenta que [o tumulto da Uniban teve como protagonistas os herdeiros do problemático legado dessa tradição e de insuficiências dela decorrentes], e continua salientando que, [a ascensão social do operariado do ABC é óbvia em toda a região. Mas um operariado que se demonstrou competência na adesão ao capitalismo e na ambição de poder, não demonstrou a menor competência para criar as bases sociais da ressocialização de seus filhos para a sociedade moderna, aberta e democrática].

Vejam que a abordagem é feita a partir da constatação de que se ocorreu uma comprovada ascensão social do operariado do ABC paulista, esse “progresso” não se processa acompanhado do desejado aprendizado cívico/democrático, haja vista a maneira como os filhos da região encaram temas minimamente passíveis de uma compreensão cidadã mais desenvolvida e contemporânea, como, por exemplo, o lidar com as diferenças, enfrentar os preconceitos , assim como outros tabus que, no conjunto das ignorâncias que herdamos, não por nossa culpa direta, mas decorrentes do fardo pesado que as elites históricas dominantes nos impuseram, sobretudo embutidas num modelo de educação focado na manutenção do status quo, e nunca pensado para que o povo, pudesse enfim, também, ser partícipe pleno do poder.

Esses aspectos de uma herança de submissão, contudo, não podem se constituir em objeto para justificar a estupidez ou para perpetrar esta ambígua realidade, a de que os oriundos de uma vida mais pobre e modesta economicamente não possam assimilar no mesmo espaço e tempo comportamentos ou atitudes igualmente condizentes com os avanços que o conjunto da humanidade em sua trajetória cívico-evolutiva vem acumulando.

O artigo do professor José Souza Martins é, no limite, uma oportunidade a mais para refletirmos sobre esses embaraços ou para, aproveitando o momento, raciocinarmos sobre esses muros que ainda nos separam da civilização contemporânea sem o necessário enfrentamento, especialmente porque retrata uma prática de educação deturpada, conforme diz: [Os estudantes entrevistados pela mídia expuseram sua censura conservadora e intolerante à moça e sua própria censura à mídia pela visibilidade que deu à ocorrência]. E mais adiante ele comenta o pensamento enviesado dos herdeiros do chamado novo sindicalismo do ABC, classificando sua atitude como [autoritária e de conservadorismo popular], ou ainda de [conservadorismo autodefensivo], destacando, [é bom que se diga, em face dos efeitos desagregadores da modernização e da transformação social].

Na atual conjuntura, têm-se a impressão de que os movimentos sociais – os sindicatos, sobretudo -, convergem para algo que vai se constituindo como a prática da mobilização aparente, dado que o preço que pagam para participarem do jogo do poder, pela cooptação a que se submeteram em vários níveis, os amordaça criticamente, retirando-lhes o que antes tinham de melhor, além da ação corporativa e economicista para a qual foram criados, a sua atitude contestatória que no geral faziam valer com relativo grau de autonomia e independência.

Esse vazio de debates, aliado ao um quadro “promissor” de participação no poder, como consequência e beneficiários que são de suas carreiras sindicalistas, têm transformado os sindicatos em instâncias quando muito de lobby no Congresso Nacional – afora, naturalmente, a obrigação de fazerem anualmente suas campanhas salariais de resultados bem previsíveis - , desprezando em demasia uma ferramenta com a qual muito contribuíram para a consolidação da democracia política no país, na disseminação de uma perspectiva educativa dos trabalhadores para a cidadania, oportunidade em que também faziam a educação política, ainda que muito vinculada aos aspectos ideológicos e partidários de suas preferências.

Então, fenômenos comportamentais autodefensivos e alienados como o caso da agressão cometida contra o modo de vida da estudante Geisy, com relativa consciência por seus colegas e vizinhos, somente podem ser explicados a partir da decadência de valores. Neste caso parece ainda pior, da mistura da falta de valores com a intolerância herdada da emergência de uma contracultura. E isso muito tem a ver com a predominância de um modelo que tudo faz e explica pela supremacia do consumo, em detrimento exatamente daquilo que permite aos seres humanos se diferenciarem do resto do mundo irracional, a apropriação do saber, sobretudo como instrumento de mudança, não exclusivamente uma mudança material.

Daí nos encontrarmos diante desse grave dilema para a democracia, que parece ter encontrado no lulismo e no novo populismo por ele praticado a explicação e raiz para se multiplicar, algo que muitos cientistas sociais, como Luiz Werneck Viana, Francisco Oliveira e expoentes do mundo da ciência política chamam de retorno à Era Vargas, ou de “populismo autoritário”, para referenciar aquilo que de mais perverso tal período representou para a perspectiva da emancipação democrática brasileira, o apelo alienado ao sentimentalismo ou a tentativa de regresso à uma luta de classes despolitizada, na qual a única coisa que importa é a palavra do mito. E esse modelo mitológico não educa ninguém para a democracia, mas subalterna as pessoas e pode sucumbir o espaço da cidadania.




3 comentários:

Rafael Borges disse...

Caramba, Chico, é mesmo de dar inveja, o estado de refestelança a que chegaram a maioria de ex-dirigentes sindicais, sem que se verifique mais nenhuma menção em seus jornais dos descasos políticos e governamentais. Muito boa sua análise.

Antonio Teixeira de Barros disse...

Prezado Francisco,

É muita generosidade de sua parte atribuir tanto mérito à minha orientação. Mas na realidade, eu é que sou grato pela oportunidade que tive de conviver com vc e compartilhar de sua rica experiência sindical e de sua capacidade de reflexão acadêmica.

Quisera eu encontrar outros orientandos com a sua formação e a sua habilidade para a escrita e a capacidade para a análise sofisticada de temas tão complexos.

Parabéns pelo artigo e pelo blog e sucesso em seus projetos.

No que precisar, conte sempre comigo!

Um abraço,

Antonio Barros

Wellington Oliveira disse...

Caro Chico,

Você nos oferece mesmo uma ótima oportunidade para refletirmos sobre o papel desses movimentos hoje. Creio que precisam se refazer como movimento.